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Delitos de trânsito e o dolo eventual

O Tribunal do Júri, instituição arraigada em nossas tradições jurídicas, se reveste de incrível apelo, desde a sua origem, os seus propósitos e o seu cunho eminentemente democrático. Trata-se, em brevíssima instância, de um procedimento em que pessoas comuns, do povo, nem sempre de reconhecido saber jurídico, proferirão suas convicções morais sobre casos de crimes dolosos contra a vida.

Pois bem. O dolo direto ocorre quando o agente quer pontualmente a morte de uma pessoa. Já o dolo eventual existe quando a pessoa não quer diretamente a morte, mas consente com a possibilidade de ocasioná-la: ela “dá de ombros”, aceita o resultado morte e não deixa de agir mesmo que isso possa ocorrer. Seria o caso de disparos de arma de fogo em uma praça pública repleta de pessoas: sabe-se que a morte pode e provavelmente vai ocorrer, e o atirador dispara mesmo assim.

Os crimes culposos, por sua vez, ocorrem por imprudência, imperícia ou negligência, não vão a júri popular e recebem penas menores. Diz-se haver culpa consciente quando a pessoa, apesar de imaginar que pode ocorrer uma morte, de maneira alguma aceita o resultado fatal. É o caso do motorista que, em excesso de velocidade (agindo, portanto, com imprudência), causa um acidente, capota seu carro e acaba por matar um pedestre. Se ele tivesse a certeza de que ultrapassar o limite de velocidade naquele momento o envolveria em um acidente funesto, talvez nem saísse de casa, até porque estaria consentindo com o próprio infortúnio!

Parece tênue, porém é gigantesca a diferença entre as modalidades da ação: enquanto o atirador da praça pública descarrega a sua arma em um local público sabendo que poderá matar alguém, o motorista não quer o acidente nem a morte de qualquer pessoa. Ambos sabem que a morte pode eventualmente ocorrer: o primeiro a aceita, mas o segundo não.

Nesse sentir, o objetivo desse pequeno texto é justamente mostrar a abissal diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente, especialmente quando se trata de homicídios ocorridos na direção de veículo automotor. Não não raro, quando se mencionam delitos de trânsito e o dolo eventual, a confusão entre ambos gera efeitos deletérios no imaginário popular e também na aplicação da lei, com interpretações nocivas à própria sociedade.

Hoje em dia basta que nos sentemos à direção de um veículo automotor para gerar qualquer tipo de risco, tanto a nós como a outras pessoas. Mas é preciso muito mais do que isso para ser submetido a júri popular.

Karla Sampaio - Advocacia Criminal Especializada, desde 2005