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A lavra clandestina e a extração mineral: a múltipla imputação que não pode perdurar, à luz do Direito Penal mínimo

Como ente transformador da natureza, o homem percebeu que deveria diminuir o impacto destrutivo de suas ações, para garantir-lhe a preservação. Para tanto, criou um sistema de normas para disciplinar a relação com o seu habitat, visando o uso racional e equilibrado da natureza e de seus recursos. Aí surge o Direito Ambiental, técnica de preservação da natureza e controle social, sistematizado em regras administrativas, civis e criminais, já que também foi reconhecida constitucionalmente a sua essencialidade.

Pois bem.

A tutela ambiental é uma proteção difusa, na qual o direito é de “todos”, sendo indefinidos os sujeitos desse direito. A preservação ambiental passa a ser uma função e ao mesmo tempo uma obrigação do Estado. E, como é sabido, quando as medidas de natureza civil e administrativa não se tornam suficientes, entra em ação a proteção penal. A razão para autorizar a tutela penal, que até então era promovida apenas na esfera administrativa, passa a ser o da “lesividade da conduta”, simbolizada pelo dano ou perigo que ela representa para os bens ambientais.

Dentre os vários bens tutelados pela Lei Ambiental, a extração ilegal de recursos minerais é tipificada como crime na Lei nº 9605/98:

Art. 55. Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida.
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente.

Além do crime ambiental, a extração mineral irregular está prevista como delito de usurpação do patrimônio público, previsto no art. 2º da Lei nº 8.176/91:

Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo.
Pena – detenção, de um a cinco anos, a multa.
§ 1º Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo.

Pode-se dizer, outrossim, que o tipo penal da “lavra clandestina” procura evitar que atividades potencialmente degradadoras operem sem chancela estatal. Com efeito, a mineração é uma atividade permitida, mas deve ser controlada e autorizada. Como todos os demais delitos ambientais, a justificativa é a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.

Sobre o tema muito se discutiu sobre o aparente conflito entre o art. 55, da Lei nº 9.605/98, e o artigo 2º, da Lei nº 8.176/91. O primeiro diploma legal dispõe sobre as sanções penais e administrativas às condutas lesivas ao meio ambiente; o segundo define crimes contra a ordem econômica e cria o sistema de estoques de combustíveis.

Parte da doutrina não aceita essa dupla tipificação, face ao princípio do non bis in idem, alegando que o dispositivo da Lei nº 8.176/91 foi derrogado pelo art. 55 da Lei nº. 9.605/98, isto é, há um conflito de leis no tempo. Para esta corrente, a Lei Ambiental, por ser especial, tutela também o patrimônio da União, além do meio ambiente, não havendo concurso de crimes. A outra corrente, mais gravosa, entende que se trata de concurso formal de crimes. Compreende essa doutrina que o art. 2º, da Lei nº. 8.176/91, tem por escopo a proteção de bens da União, e não o meio ambiente, já que na extração de recursos minerais há o evidente interesse econômico.

Infelizmente, os tribunais firmaram entendimento de que se trata da tutela de bens jurídicos distintos: o art. 55, da Lei nº 9.605/98, protege o meio ambiente. Já o art. 2º, da Lei nº 8.176/91, defende o patrimônio público. Havendo o concurso de crimes, outro reflexo dessa tese está na incompetência do Juizado Especial Criminal para o processo e julgamento da ação. Isso porque a pena máxima da Lei nº 8.176/91 é de cinco anos, rechaçando a possibilidade de transação penal, suspensão do processo e os demais benefícios da lei.

No Brasil, para agravar ainda mais a situação, o dano ambiental gerará a múltipla responsabilização do agente, pois concorrerão as esferas administrativa, disciplinar, civil, criminal etc. Observamos, porém, que as penas muitas vezes se confundem, pois dessas esferas acabam resultando penas pecuniárias e/ou obrigações de fazer ou não fazer, o que se traduz em verdadeiro bis in idem.

Data venia, a múltipla responsabilização nos parece surgir na contramão aos princípios da economicidade e eficiência, pois uma mesma conduta tem o poder de movimentar diversas esferas da máquina estatal. Compreendendo o Direito Criminal como ultima ratio, não é exagero afirmar-se que a Ação Civil Pública e a Ação de Improbidade Administrativa seriam exemplos de instrumentos suficientes e eficazes para o trato da maioria das questões ambientais. Vale dizer, restará ao Direito Penal o patamar de importância que merece, e o ataque a poucas e realmente criminosas condutas contra o meio ambiente.

Karla Sampaio - Advocacia Criminal Especializada, desde 2005