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A independência das instâncias como entrave à efetividade da justiça penal negocial

Não é novidade que a justiça criminal brasileira caminha a passos largos para um modelo mais negocial, ampliando o espaço de aplicação de instrumentos de consenso. Tenham eles a finalidade de aumentar o poder investigativo estatal, pura e simplesmente, ou o propósito de sintetizar demandas penais, são todos uma firme realidade.

Esse cenário tem inspiração em ordenamentos estrangeiros, sobretudo o europeu e o norte-americano. Todavia, ao serem transplantados para a legislação pátria, nem sempre se harmonizaram com as nossas peculiaridades.

É importante estarmos atentos, por outro lado, porque muitas vezes tais institutos acabam sendo usados em situações nas quais foram atingidos bens jurídicos diversos.

Explicamo-nos: situações havidas na esfera civil, penal ou administrativa podem ensejar a negociação, nem sempre excludentes entre si. Nessa toada, natural que haja uma pluralidade de entes potencialmente interessados na persecução do fato, ao que o poder estatal acabaria por se apresentar de maneira lesivamente fragmentada.

Não se desconhece que no Brasil há independência entre as instâncias civil, penal e administrativa.

Ocorre que, na contramão do estímulo estatal para que se utilizem cada vez mais os mecanismos de consenso e de negociação, a realidade do dia a dia exige dos operadores do direito a máxima cautela. Afinal, na hora de se aderir a um acordo em detrimento de outro, pode o potencial aderente incorrer em bis in idem, isto é, em múltiplas penalidades.

Em institutos como o da leniência, à guisa de exemplo, em que o Estado tem a expectativa de se ver ressarcido por atos lesivos ao erário, pode-se firmar um acordo, mediante a devolução de vultuosos valores aos órgãos competentes (CADE, CGU etc.). Contudo, tendo em mira que nem sempre os acordos preveem a participação do Ministério Público, titular da ação penal, nada impede que posteriormente seja instaurada demanda criminal ou de improbidade.

No mesmo sentido são as críticas ao novel Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), no qual a confissão é requisito mínimo para sua propositura. Nada há na lei – na prática, nem se fale, pois o instituto é muito recente, que trate dos limites do uso da declaração do agente em outros ramos de responsabilização.

É dizer, pode ser verdadeiro desestímulo ao aderente a lacuna sobre até quanto pode ser responsabilizado pela conduta praticada e confessada.

A efetividade dos instrumentos de consenso guarda importante relação com a elaboração de um trabalho integrado entre todas as esferas. E isso não apenas sob a ótica de se conferir garantias ao investigado, mas também porque os recursos passam a ser utilizados de maneira mais proveitosa ao próprio Estado, que amplia os espaços de investigação e de reparação.

Certo é que apenas obedecendo a tais premissas é que seguiremos o entendimento de ordenamentos jurídicos estrangeiros. Afinal, ao longo de anos eles vêm aprimorando a aplicabilidade de instrumentos de barganha, em clara tendência a cultivar a transparência. Somente assim, também, diminuem a discricionariedade das autoridades no âmbito das negociações, exigindo-se objetividade quanto ao que cada parte envolvida oferecerá.

Não se pode negar que o ordenamento jurídico deve evoluir junto com a sociedade em que está fundado. Nesse contexto se insere o Brasil, apresentando importantes avanços na aplicação e elaboração de leis. Contudo, o sucesso de instrumentos oferecidos dentro de uma realidade de justiça negocial caminha com a visão de segurança do cidadão para com o Estado.

Há, portanto, a premência da relativização de regras de incomunicabilidade das esferas, a fim de que se conceda o que podemos chamar de “equilíbrio de expectativas”, em aproximação – adequada – ao postulado da paridade de armas.

Crédito da imagem: https://canalcienciascriminais.com.br/a-independencia-das-instancias-como-entrave-a-efetividade-da-justica/

Karla Sampaio - Advocacia Criminal Especializada, desde 2005